Venho falar de uma mulher. Que vem sussurrando no meu ouvido há alguns anos. Na verdade desde sempre, mas só há pouco tempo foi possível escutá-la. Começou com voz rouca, enfraquecida, se arrastando em um mundo subterrâneo, cheio de lodo, nas profundezas do inconsciente em meio a predadores mentais e violentadores sexuais e psíquicos. Se escondia, fugia, passava fome, andava desgrenhada e vagabunda, como se estivesse sem rumo, mas sabia exatamente para onde estava indo, portanto sobreviveu.
Nessa caminhada tortuosa e escura, às vezes a trilha se iluminava e ela foi encontrando alimento ao longo da vida por meio de danças, festejos, música e outras mulheres que também estavam passando por aí neste mesmo submundo, nesta mesma trilha selvagem.
Apesar de parecer o contrário, cada vez mais suja, com unhas grandes e rosto desfigurado, ela ficava mais forte, sua voz se fortalecia, a rouquidão foi embora e ela começou a falar. Aqui da superfície pude escutar essa voz que vinha das mais profundas sombras, e então comecei a descer, na verdade comecei a cair, em um poço sem fim. Durante a queda, passavam flashes da minha infância, adolescência, relações, amizades, casamento, expectativas, idealizações, sonhos reais e outros inculcados em mim… bati com a cabeça lá no fundo e fiquei zonza, o mundo girou e tudo foi ficando tão claro até doer os olhos. A luz às vezes pode ser tão intensa que até machuca.
Essa luz que quase me cegou quando despertei lá embaixo era na verdade um reflexo, daqueles quando a luz bate no espelho. Foram noites escuras da alma as que estive desacordada no fundo do poço, em uma delas tive um sonho, que entrava numa sauna cheia de fumaça e penumbra, nua andava e olhava o espelho à minha direita, nele estava eu mesma sentada, também nua, com cara de deboche, fumando um cigarro, pensei: uma puta fumando cigarro. Continuei andando e ela ali, mais sensual e indiferente impossível.
O fato é que ao bater com a cabeça, todas aquelas imagens da minha vida viraram do avesso. Percebi que elas eram apenas uma parte de mim, a parte que aprendi ser, comportada, bonita, resiliente, serviçal, sonhadora. Durante toda uma vida outra parte ficou excluída, deixada de lado, no umbral, no fundo do poço. Tive que descer para resgatá-la, pois já não podia viver sem ela, nem ela sem mim. Mas chegando lá foi na verdade ela quem me resgatou, ela me ajudou a subir novamente, uma subida longa, cansativa, dolorosa, escalando terrenos íngremes, a ponto de cair em cada passo. Acho que neste ponto tive outro sonho… eu subia de um poço, vestida de branco, carregada por outra mulher, eu estava desacordada, então ela me elevava, íamos a um lugar alto, como um grande pátio medieval. La haviam outras mulheres, roupas coloridas e angelicais. Eu ficava no meio do círculo enquanto elas faziam um ritual ao meu redor, com flores, risos e dança. Colocavam um colar de flores em mim e eu estava iniciada.
Pois bem, durante a subida, a minha mulher-guia me dizia: siga por aqui, essa rota é melhor, tome um pouco de água, respire, descanse, continue, não pare. Foi muito duro, mas desistir não era uma opção, porque uma vez iniciada eu precisava continuar, é impossível voltar atrás. Em meio a decisões difíceis, separação, morte, luto, conflitos, viagens, mudanças, regressos, a subida finalmente terminou.
Às vezes acho que já retornei à superfície, outras vezes me vejo subindo, outras torno a descer para buscar refúgio e subo saltitando, revigorada de energia. Às vezes caio e fico perdida em meio a crises existenciais e dependências emocionais que me fazem viajar ao passado, abrindo feridas que a mulher-guia tenta lamber e curar.
A mulher do espelho, assim como a desgrenhada e vagabunda não sobem nunca, elas ficam me olhando e guiando na beirinha do poço, elas são minhas fiés escudeiras. Hoje elas gritam, já não sussurram, as vezes não posso dormir até fazer o que elas estão dizendo e sempre é a melhor escolha, sempre.
A mulher de 30 e tantos ou 40 e poucos que foi capaz de interromper a rota socialmente determinada para ela e então desceu ao submundo, descobrindo quem ela realmente é, já não espera que nada nem ninguém satisfaça seus desejos e necessidades profundas. Ela já sabe que precisa descer e se resgatar quantas vezes for necessário. Ela sabe que para se achar é preciso se perder muitas vezes, resgatando-se camada por camada. Por outro lado existe um receio constante de ter seus limites atravessados uma vez mais, pois os predadores e violentadores seguem soltos fora e dentro de nós, em forma de pessoas, apegos e crenças limitadoras.
O desafio agora é descobrir o espaço correto para os outros na sua vida, as opiniões, as presenças, as expectativas. Após visitar o submundo, a mulher já não é a mesma, pode inclusive ser o contrário do que um dia foi, o que é assustador para todos e até para ela mesma.
É uma redescoberta de como se relacionar, de como estar no mundo, agora sabendo da preciosidade da existência de um submundo, revelado apenas para algumas que têm a coragem de se rebaixar.