(Trecho do diário de viagem, um dia em Veneza.)
Comendo uma das pizzas mais gostosas que já comi na vida penso: nunca me amei tanto na minha vida! A gente só percebe que se abandonou quando deixa de se abandonar. As pessoas me veem como uma mulher tão forte, decidida, independente. Mas de verdade, eu não era isso. Eu era a idealização disso. Estou vivendo isso agora, eu comigo, feliz, curiosa, caminhando, comendo, olhando, sendo, sem me preocupar por um outro, por agradar, me adaptar… nunca percebi o quanto minhas escolhas eram em função de que o outro estivesse bem. Quem nos ensinou isso pelo amor de Deus?
Quando me separei, fui muito julgada pela minha decisão, principalmente pela família do meu ex-marido: “Como você pôde fazer isso? Nunca esperei isso de você!” Porque decidi me separar eu fiz um mal àquele homem. Porque as mulheres não devem se separar, devem ficar, abrir mão de si mesmas, custe o que custar. Para eles, eu estava sempre impecável, simpática e satisfeita, sempre pronta para servir. Comunicativa, mas sem exageros; trabalhadora e ao mesmo tempo administradora da casa; revolucionária nunca, nem pensar; magra, mas não magra demais.
Aqui na Itália estou comendo o que dá na telha, e percebi em um sentido amplo da minha ação, que comer é um ato de resistência feminina! Minha calça tá apertada, tenho uma barriga imensa a essa altura da viagem e agora já não me importa. Se sentir livre desse padrão de beleza feminina é libertador. O meu compromisso deveria ser sempre com a minha saúde, não com os padrões de beleza. E mais do que isso, saborear, sem ter que esperar ou servir a alguém, sem ter que se podar, sem ter que adaptar a escolha do prato por causa do outro.
O anfitrião do restaurante se aproxima e como quem foi convidado a me dar sua opinião, me diz para comer logo e deixar para escrever ao meu namorado depois, porque vai esfriar a minha pizza. Eu lhe digo que estou escrevendo para mim mesma porque não posso deixar de registrar este momento. Ele se surpreende e se cala. Provavelmente não entende a solitude de uma mulher que chega de trem, joga a mochila no chão e come sozinha sua pizza caprese com uma taça de vinho tinto, enquanto escreve no celular seu diário de viagem para nunca mais esquecer da melhor pizza do mundo e seu ato de resistência.